INTERVENÇÃO 


INTERVENÇÃO DO DEPUTADO BARROS MOURA (Partido Socialista), na Assembleia da República, em 17/05/2001

Os últimos episódios da luta pelas audiências na televisão mostram que podem estar a ser, ou já foram, ultrapassados todos os limites.

Desde logo os limites impostos pela ética e pela decência. Mas também o limite da apatia e conformação do público frente ao "lixo televisivo" que lhe é servido todos os dias em doses crescentes! Está a chegar - se não chegou já - o momento em que essa mesma difusa opinião pública, formada pelas mesmas pessoas que constituem as audiências televisivas, dirá que basta! Exigindo do Estado medidas reguladoras e medidas sancionatórias.

O poder político democrático não pode, nem deve, demitir-se: contemporizando com a lógica das audiências quando ela é popular, ou indo atrás e a reboque das tendências populistas que exijam medidas depois de o mal estar feito!

O lixo televisivo - recuso-me a fazer propaganda de nomes de programas ou de estações - ultrapassou há dias de forma chocante os limites do respeito pela intimidade da vida privada e familiar e exibiu, ao que se diz com sucesso de audiência, um pequeno-grande drama familiar, num programa que violou - no entender dos especialistas - a lei da Televisão e os direitos e liberdades fundamentais.

Isso justificou já por unanimidade uma recomendação da AACS cujos termos são conhecidos, e se traduzem na exigência de "estrito cumprimento da lei". Pelo seu lado, o Governo propôs à entidade reguladora /AACS) "uma reflexão urgente" quanto à melhor forma de contrariar a "proliferação de situações chocantes".

Esta minha intervenção, no impedimento do meu Camarada António Reis que tem competência e obra neste domínio, destina-se a fazer inscrever na "Agenda Política" essa urgente reflexão.

O debate parece, finalmente, lançado e alargado na sociedade portuguesa. Não era sem tempo! Direi mais, há muito que se justifica um levantamento cívico, uma forte mobilização dos cidadãos contra esta lógica infernal e implacável que leva dirigentes de estações televisivas a exibir hoje, em pior, o que ontem condenavam como ofensa à dignidade humana e às mais elementares regras da decência!

Saudemos as manifestações realizadas em França contra o lixo televisivo e a sua lógica.
Saudemos este exemplo reconfortante de funcionamento prático da democracia, no mesmo momento em que um, simultaneamente, produto e grande patrão das audiências televisivas, acaba de ganhar as eleições numa democracia como é a Itália.

Escutemos os alertas, nem sempre populares!, do nosso Presidente Almeida Santos (ainda há dias no Congresso da Imprensa em Nova Iorque).
Estão em jogo os valores morais da nossa civilização e a coesão da nossa sociedade! Pode estar em perigo a democracia - não tenhamos ilusões!

A guerra das audiências e a violação dos limites já impostos pela lei, tem conduzido a mostrar:

- A violência, sem limites, a todas as horas sem respeito pelo direito à formação saudável da personalidade de crianças e jovens, e neutralizando todos os esforços educativos da família e da escola;

- A pornografia, a obscenidade, o sexo explícito - em canal aberto;

- A boçalidade, a ignorância, a incultura servidas sem pudor e sem decência;

- O sexismo e o machismo agressivos, primários e boçais;

- A vida privada, em condições de cárcere privado, exibida como espectáculo televisivo;

- A informação subordinada à lógica das audiências televisivas;

- A intromissão directa de televisões em campanhas eleitorais de clubes de futebol - talvez como ensaio de uma futura influência directa em campanhas políticas;

Poderia continuar!

O Estado tem responsabilidades e tem meios para corrigir e inverter esta situação intolerável para todas as pessoas responsáveis:

- Os pais;
- Os professores e responsáveis educativos;
- Os profissionais da comunicação;
- As Igrejas e Confissões Religiosas;
- As grandes instituições do Estado, desde a Justiça às Forças Armadas;
- Os criadores culturais e os artistas.


Para todas as pessoas de bom senso!

A situação põe em causa todo o sistema político:

- ultrapassado, ridicularizado e desprestigiado na sua formação preventiva, reguladora e sancionatória;

- enfraquecido por uma lógica impiedosa que substitui os problemas reais por uma visão mítica e virtual que impede os cidadãos de conhecerem e enfrentarem os reais desafios do seu País, e de assumirem as suas responsabilidades como pessoas de bem.

- Poder político, em breve, substituído, nas suas funções de mediação, de representação e, até, de solução dos conflitos por um qualquer telejornal ou reality show!

É, antes do mais, disto mesmo que vos quero falar. Temos a responsabilidade comum de defender o nosso sistema democrático e os valores da nossa civilização contra o individualismo feroz e a barbárie que nos chegam pela televisão.

Como disse hoje António Reis:

"se na economia o poder político impõe regras para evitar que a economia de mercado se transforme numa selva, também no audiovisual não podemos permitir que seja a selva a reinar impunemente"

Podemos e devemos tomar medidas a esse nível e, desde logo, exigir o cumprimento da legislação em vigor de forma a prevenir situações em que só reste o recurso à "bomba atómica" (que seria fechar uma estação) deixando o outro lixo à solta!

Mas devemos exigir, antes do mais, a auto-regulação em conformidade com a lei e a Constituição.
Podemos e devemos exigir que a Televisão Pública cumpra o seu papel formativo, e também regulador, na definição de padrões de referência éticos, de qualidade cultural e, obviamente também, de recreação.

E, para isso, tomem-se as medidas necessárias e disponibilizem-se os meios financeiros (de que, como se sabe, a RTP foi privada com a supressão da taxa).

Este não pode, nem deve, ser um tema de disputa inter-partidária mas de mobilização de esforços de todo o sistema político e da sociedade civil: os partidos, as instituições e órgãos do Estado, mas também as associações e parceiros sociais e os próprios órgãos de comunicação que transmitem o debate em curso. Das próprias televisões que não se auto-regulam!

É por isso que, pelo nosso lado, não vamos entrar numa guerra de iniciativas legislativas e de reformetas apressadas - a exemplo das guerras de audiências entre as Televisões!
O problema é político. Exige uma tomada de consciência colectiva. Se houver necessidade de novas leis deveremos chegar a elas através de um forte consenso apoiado pela sociedade.

Trata-se de fazer respeitar a moralidade, o bom gosto e a decência através do funcionamento de um bom sistema público regulador, da auto-regulação e da responsabilidade individual de cada pessoa e não de impor qualquer forma de censura.

Saudamos o facto de outros partidos, como o PSD, ao anunciarem iniciativas legislativas revelarem a consciência de que não podemos ficar parados.

Mas preferimos procurar activamente o consenso sobre as medidas. É para isso que já na próxima 4ª feira, por iniciativa do seu Presidente Jorge Lacão consensualizada com o Vice-Presidente Guilherme Silva, a 1ª Comissão reúne com a Alta Autoridade para a Comunicação Social para avaliar a situação e discutir medidas.

Auguramos o melhor para essa reunião entre o órgão legislativo e o órgão regulador.
Esperamos que o Governo tome, sem hesitações, as medidas ao seu alcance.
E, sobretudo, apelamos desde já à mobilização cívica contra o lixo televisivo e ao combate político pela liberdade de expressão, pela cultura e em defesa do nosso sistema democrático.