Artigo sobre a "regulação do audiovisual"
Artigo de Vital Moreira ("Verdades e mitos sobre a regulação do
audiovisual")
in Diário Económico de 8 de Junho de 2001
A melhor alavanca para obter uma eficaz auto-regulação ou co-regulação
contra os interesses dos regulados é a existência de uma real e efectiva
hetero-regulação. Uma regulação pública sem dentes («toothless regulation»
na gíria da literatura especializada) só suscita o abuso, a licenciosidade
e a impunidade.
O escandaloso caso do «Bar da TV» da SIC - transmissão directa de uma
dramático diálogo entre uma jovem protagonista de um «reality show» e os
seus pais, vindos da província para a tentarem persuadir a abandonar o
programa - veio suscitar de novo a questão da auto-regulação dos meios de
comunicação, no sentido de acordarem entre si formas de contenção na
emissão de programas atentatórios da dignidade pessoal ou da deontologia
comunicacional.
Todas as estações de televisão manifestaram a sua concordância de
princípio. A amplitude da condenação pública do referido episódio e do
«telelixo» em geral (incluindo apelos ao boicote dasreferidas estações)
terá seguramente ajudado a esta inesperada disponibilidade dos nossos
«tycoons» do audiovisual. Mas antes de depositar excessivas esperanças no
sucesso do exercício torna-se necessário analisar as virtualidades e os
limites da auto-regulação.
Em princípio, as empresas privadas e os profissionais em geral não gostam
da regulação de nenhuma espécie, nem de auto-regulação nem muito menos da
hetero-regulação pública. No caso das televisões privadas, o caso é tanto
mais difícil quanto está em causa uma luta de morte por recursos
publicitários escassos, cujo fluxo depende naturalmente da audiência de
cada uma. Neste contexto, todas as televisões privadas poderiam
compartilhar da despejada proclamação de uma conspícua "intertainer" de uma
delas, segunda qual «quem tem ética passa fome».
Explorando a nossa indescritível falta de cultura cívica, as estações de
televisão investem no mais primário e mais boçal "vouyerismo" das massas. O
abismo atrai o abismo, diziam os antigos, numa escalada sem limites.
Justamente nesse vergonhoso episódio a SIC bateu a audiência da sua
rival!... Pedir-lhes que se auto-restrinjam pode ser simplesmente ridículo,
se elas não sentirem que a alternativa é a hetero-restrição pelo poder
público, nomeadamente pelo organismo que está investido nesse poder, a
saber, a Alta Autoridade para a Comunicação Social.
O défice de regulação das televisões privadas tem duas origens entre nós.
Por um lado, a liberalização da televisão surgiu num quadro de dicotomia
entre o «serviço público», confiado à estação pública, e as televisões
privadas, como se estas, apesar do impacto especial do meio sobre a opinião
pública e de utilizarem, mediante licença pública, um bem do domínio
público (o espectro radioeléctrico), não estivessem também sujeitas a
deveres e a responsabilidades públicas.
Por isso, enquanto noutras «actividades de interesse económico geral» (para
utilizar uma expressão oriunda do direito comunitário), como por exemplo as
telecomunicações, as empresas privadas estão sujeitas a certas «obrigações
de serviço público», as televisões privadas ficaram praticamente isentas de
qualquer responsabilidade pública. A própria obrigação de tempos de antena
eleitorais, inscrita na própria Constituição, é generosamente paga pelo
Estado.
A segunda razão para a sensação de desregulação das televisões privadas tem
a ver com algumas deficiências do sistema de regulação pública. A AACS foi
concebida essencialmente como uma autoridade independente, a funcionar
junto da Assembleia da República. Isso quer dizer, desde logo,
independência em relação ao Governo, já para evitar a ingerência partidária
nos meios de comunicação, já porque nenhum ministro ousaria sancionar as
infracções às leis e aos regulamentos por parte das televisões, sob pena de
crucificação pelas mesmas. Mas a independência do regulador público não é
menos importante em relação aos regulados, sob pena de falta de autoridade
ou, pior do que isso, sob risco de «captura» da regulação pelos
interessados em seu benefício.
Ora a composição da AACS deixa uma equívoca margem para a influência
directa dos próprios regulados. De facto, na sua composição legal entra um
representante dos jornalistas e outro das empresas de comunicação social. E
mais grave do que isso, na sua composição concreta contam-se vários
jornalistas ou outras personalidades ligadas ao sector. A AACS apresenta
por isso uma natureza híbrida, revelando portanto uma vertente de
auto-regulação parcial, que não pode deixar de ser perturbadora dos cânones
e da lógica da regulação independente.
Não se pode dizer que o desempenho da AACS seja em geral negativo. Mas é
claramente insuficiente, mesmo nas áreas em que o seu papel tem sido mais
positivo, como na garantia do direito de resposta. Em relação às televisões
a sua acção deixa francamente muito a desejar, sobretudo quando são
notórias as infracções quotidianas das estações (não só as privadas, valha
a verdade), no que respeita aos limites da publicidade, à obrigação de
emissão de programação em língua portuguesa, à divulgação de inquéritos de
opinião, às garantias do direito de resposta, ao respeito do bom nome, da
privacidade e da dignidade das pessoas, bem como do rigor e isenção da
informação e das regras da ética jornalística (veja-se o que se passou, por
exemplo, no drama de Entre-os-Rios).
Poderes para intervir são coisa que não falta à AACS. Ela tem poder
regulamentar de emitir recomendações e directivas, de aplicar sanções. No
caso da televisão as coimas podem ir até 50 mil contos e ser acompanhadas,
em certos casos mais graves, de suspensão da emissão. O que não se pode
dizer é que o regulador público tenha feito tão bom uso dos seus poderes
quanto seria para desejar. Noutros países, ele não teria deixado de emitir
normas morigeradoras dos «reality shows» e de outro «telelixo» e, em caso
de infracção dos direitos individuais, não teria hesitado em punir com a
devida severidade. Entre nós a AACS adoptou primeiro uma atitude de
complacência, depois emitiu uma frouxa condenação do episódio mais
escandaloso (o referido caso do «Bar da TV») e finalmente parece ter-se
conformado ao papel de «alcoviteira» de uma tentativa de auto-regulação dos
interessados, ou de co-regulação com eles.
A auto-regulação e a «regulação concertada» são sem dúvida preferíveis à
hetero-regulação, desde logo porque geram a sua observância pelos
interessados, evitam a intervenção pública unilateral e poupam em
litigiosidade. Mas a melhor alavanca para obter uma eficaz auto-regulação
ou co-regulação contra os interesses dos regulados é a existência de uma
real e efectiva hetero-regulação. Uma regulação pública sem dentes
(«toothless regulation» na gíria da literatura especializada) só suscita o
abuso, a licenciosidade e a impunidade.
Vital Moreira é professor da Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra e presidente do Centro de Estudos de Direito Público e Regulação
(CEDIPRE) e partilha esta coluna quinzenalmente com Maria Manuel Leitão
Marques.
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